A história do fatídico GP da Bélgica de 1960 Print
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Friday, 21 February 2020 22:17

Todos falam de Imola, 1994 como sendo o pior acidente da história do automobilismo. Não é. Nem sequer é da Formula 1. Sendo um desporto perigoso que é, certamente custou a vida de muitos pilotos, mas nunca tantos acabaram no hospital ou na morgue como aquele que aconteceu no fim de semana de 18 e 19 de junho de 1960, no circuito de Spa-Francochamps, na Bélgica. Quando essa corrida terminou, com a vitória de Jack Brabham, dois pilotos estavam mortos e outros dois gravemente feridos. E entre as vitimas esteve o primeiro dos pilotos ao serviço da Lotus, e alguns diziam ser tão bom como Jim Clark. Um dos feridos era Stirling Moss.

 

E sobre esse fim de semana de há 60 anos, praticamente esquecido da memória do automobilismo, que vou falar.

 

UM CARRO DEMASIADO LEVE

 

Em 1960, a televisão estava na sua infância, embora já tivessem sido transmitidas algumas corridas na Europa, entre os quais o GP do Mónaco. Mas sem gravações que tenham sobrevivido até aos nossos dias, pois não havia o cuidado pela conservação de fitas, nem se sabe se esta corrida teve transmissão televisiva por parte das cadeias locais. Provavelmente isso explica o pouco conhecimento deste fim de semana de Grande Prémio, ou porque não teve tanto impacto como, por exemplo, o acidente das 24 Horas de Le Mans de 1955, apenas cinco anos antes, e que matou mais de 80 pessoas.

 

 

Dito isto, naquele fim de semana de junho, nas vésperas de mais uma edição das 24 Horas de Le Mans, a Formula 1 chegava à Bélgica depois de quatro provas: Argentina, Mónaco e as 500 Milhas de Indianápolis - faziam parte do calendário!

 

Ao chegarem máquinas e pilotos ao circuito de Spa-Francochamps, então na sua extensão de 14 quilómetros, 19 pilotos estavam inscritos. A Ferrari trazia, para além do alemão Wolfgang Von Trips e o americano Phil Hill, os seus habituais pilotos, o local Willy Mairesse, que fazia aqui a sua estreia na Formula 1, e correria no lugar de Richie Ginther. Na Lotus, a equipa oficial era constituída pelos escoceses Innes Ireland e Jim Clark, para além do inglês Alan Stacey. Havia mais dois pilotos inscritos com carros da Lotus, Stirling Moss, com a inscrição da Rob Walker Racing, e Mike Taylor, inscrito pela Taylor-Crawling Racing Team.

 

 

   O traçado de Spa-Francorchamps tinha o dobro da que hoje é o circuito. Mais curvas, passagens por vilarejos. Outros tempos.

A BRM também tinha três carros inscritos, para o inglês Graham Hill, o sueco Jo Bonnier e o americano Dan Gurney, mas a Cooper trazia oficialmente somente dois carros, para o australiano Jack Brabham e o neozelandês Bruce McLaren, enquanto que pela privada Yeoman Credit estavam os ingleses Chris Bristow, Tony Brooks e o belga Olivier Gendebien. Ainda havia mais um Cooper privado, inscrito pela Ecurie Nationale Belge, para o local Lucien Bianchi.

 

Por fim, a americana Scarab também estava presente, com dois carros para Lance Reventlow e Chuck Daigh.

 

Os acontecimentos daquele fim de semana fatídico começaram, tal como iria acontecer 34 anos mais tarde, nos treinos. logo na sexta-feira, o eixo traseiro do Lotus 18 de Moss quebrou-se e perdeu o controlo do seu carro, sendo cuspido para fora. No acidente, o piloto britânico partiu as duas pernas e ficava fora de combate, embora vivo. Nessa mesma tarde, um outro Lotus 18, o de Mike Taylor, sofreu também um acidente, onde os seus ferimentos foram ainda mais graves, pois sofreu fraturas múltiplas por todo o corpo.

 

UMA CORRIDA MORTÍFERA

 

Apesar dos acidentes, graves por certo, as não tão dramáticos - recorde-se que as mentalidades desse tempo eram diferentes do que são agora - a sessão continuou, acabando com o Cooper oficial de Jack Brabham a fazer a pole-position, tendo a seu lado outro Cooper, mas privado, de Tony Brooks. A completar a primeira fila estaria o Lotus de Stirling Moss, mas sem poder competir devido ao seu acidente, no seu lugar ficou o Ferrari de Phil Hill. Na segunda fila estava outro Cooper privado, o de Gendebien, e o BRM de Graham Hill, enquanto que na terceira fila estaria outro BRM, o de Jo Bonnier, e os Lotus de Ireland e Bristow. A fechar o "top ten" estava o terceiro Lotus de Jim Clark.

 

  Nos anos 60 a largada era na descida para a Eau Rouge, ladeada de grama dos dois lados. Bem diferente da atual. 

 

Quando os carros alinhavam para a pista, naquele dia 19 de Junho de 1960, para o inicio de mais uma corrida de Formula 1, não se poderia adivinhar que para dois deles, Chris Bristow e Alan Stacey, este iria ser a sua última prova das suas vidas. Dali a algum tempo, num espaço de minutos entre ambos, eles estariam mortos em acidentes separados, e num deles, as circunstâncias roçaram o bizarro.

 

Mas quando foi dada a partida, Jack Brabham tomava a liderança após fazer a Radillon na frente do pelotão. Graças ao seu Cooper-Climax dominador, ele não iria mais o largar o comando até à 36ª e última volta. Mas entre um e outro momento, iria se assistir a momentos negros da história do automobilismo.

 

 

 

Com Brabham na liderança, e sem adversários à altura, os motivos de interesse aconteciam logo atrás. O local Gendebien ficou com o segundo posto, mas cedo foi passado pelo Lotus de Ireland, que andou na perseguição a Brabham. Contudo, na volta treze, sofreu um pião devido a problemas de embraiagem e não conseguiu voltar à corrida. O lugar voltou a ser ocupado por Gendebien, mas cedo foi ultrapassado por Bruce McLaren.

 

Por esta altura, Chris Bristow e Willy Mairesse lutavam pelo sexto posto, o ultimo lugar pontuável. Ambos eram conhecidos pelo seu estilo agressivo. Bristow, nascido em 1937 em Londres, era dos mais jovens do pelotão, ao lado de Bruce McLaren, mas enquanto o neozelandês era mais ponderado, Bristow era rude. Filho do dono de um concessionário de automóveis em Londres, era conhecido pelo apelido de "o homem selvagem do automobilismo britânico", a sua velocidade pura deu-lhe uma ascensão meteórica para a Formula 1. Naquela temporada, a Yeoman Credit, a equipa de Reg Parnell, dera-lhe um Cooper para competir, e nas três corridas em que participou, a sua velocidade não lhe tinha dado qualquer chegada, mas sabia-se do seu potencial... se alguém o conseguisse domar.

 

  Chris Bristow, depois de largar em 8°, vinha brigando pela 6ª posição antes do acidente que tirpu sua vida.

 

Já Mairesse, nove anos mais velho e bom conhecedor da pista belga, estava a ter a sua estreia na Formula 1 pela Ferrari, depois de ter segurado um lugar na Scuderia no ano anterior. Tinha andado na Endurance, e a sua vontade de correr começava a ser lendária. Certo dia, Peter Revson, no inicio da sua carreira, tinha dito que "olhar para Mairesse antes da partida era como observar o Diabo a correr".

 

Assim sendo, como nenhum deles cedia posição, eles corriam nos seus limites, até que alguém cedesse. E foi assim na volta 18, quando ambos os carros passavam pela curva Bruneville. Ali, o Cooper de Bristow perdeu o controle e bateu forte na berma, matando-o instantaneamente.

 

   Após decolar em uma saliência no relevo fora da pista, uma cerca de arame farpado teria sido fatal para o piloto.

 

As circunstâncias da sua morte parece que foram tiradas de um filme de terror, mas é a pura - e horrível - verdade. Naquele sitio da curva Bruneville, havia um banco com 1.20 metros de altura, e três metros mais adiante existia uma vedação com arame farpado. Quando Bristow perdeu o controle do seu Cooper, a berma serviu de impulso para que o carro caísse na rede e no impacto, decepasse a cabeça do jovem piloto de 22 anos. Era a primeira fatalidade do dia.

 

UM PÁSSARO PELO CAMINHO

 

Se acham que este primeiro acidente foi horrível, as circunstâncias do segundo acidente roçam o bizarro. E aconteceu três voltas depois, no temível Masta Kink.

 

No antigo circuito, o Masta Kink era uma sucessão de curvas velozes, direita-esquerda-direita. Circulando a 270/280 km/hora, na maior parte das vezes, pareciam ser retas, mas na realidade era o contrário. Como a Tamburello e a Villeneuve, que antes de 1994 víamos como curvas, mas como os pilotos não levantavam o pé nesses lugares, na realidade eram falsas curvas.

 

   Alan Stacey vinha fazendo uma corrida de recuperação, após largar na última fila. Vinha em 7° quando se acidentou.

 

Alan Stacey era piloto oficial da Lotus, e tinha tanto de talento como de esperança no automobilismo, ao lado do escocês Jim Clark. Ambos faziam parte da equipa oficial, mais novos que Innes Ireland e John Surtees, os outros pilotos oficiais. Stacey nascera em 1933, em Broomfiled, e corria para a Lotus desde 1958, embora somente em 1960 que estava a ter a sua primeira temporada a tempo inteiro. E em todas as corridas que tinha participado, não terminara nenhuma.

 

Quando na volta 25 Stacey chega ao Masta Kink, aparece-lhe um obstáculo inesperado: um pássaro. Não se sabe qual foi a espécie que travessou o seu caminho, mas o que se sabe foi que o embate o fez perder o controlo do seu carro, bateu na rampa, não muito longe do sitio onde morrera poucos minutos antes o seu compatriota Bristow, e o carro, um Lotus 18, pegou fogo. Em poucos minutos, estava morto.

 

   Consumido em chamas, com o resgate praticamente inexistente, Alan Stacey não teve a menor chance de sobreviver.

 

Mais de vinte anos depois, Innes Ireland, que quando pendurou o capacete se tornou num jornalista para a revista Motorsport, contou que pessoas que tinham testemunhado o acidente observaram o pássaro a atingir o carro de Stacey. Até agora não se sabe bem se ele já estaria morto no momento da colisão com o pássaro - com o pescoço partido ou com uma fratura no crânio - ou se quando ele foi projectado para fora do carro. Mas uma coisa era certa: aos 26 anos, a vida de Alan Stacey chegara ao fim.

 

RESCALDO

 

No final da corrida, Brabham e McLaren deram à Cooper uma dobradinha merecida, mais uma vitória a caminho da revalidação dos títulos conquistados na temporada anterior. O lugar mais baixo do pódio foi confuso: Graham Hill parou na última volta devido a problemas de motor, quando estava no terceiro posto, mas como ele não puxou o seu BRM até à meta, não foi considerado, e esse lugar ficou nas mãos do Cooper privado de Olivier Gendebien. Nos restantes lugares pontuáveis, o Ferrari de Phil Hill conseguiu o quarto posto, enquanto que Jim Clark conseguia os seus primeiros pontos da carreira com o seu quinto posto. A fechar os pontos estava outro belga: Lucien Bianchi.

 

   Líder desde a largada, Jack Brabham venceu de ponta a ponta, com mais de um minuto de vantagem para Bruce McLaren.

 

Dos pilotos feridos, Stirling Moss ficou fora de combate por mais de dois meses, falhando boa parte da temporada, mas quando regressou, acabou por triunfar em Riverside, nos Estados Unidos, palco da última prova do campeonato desse ano. Mike Taylor também acabaria por recuperar dos ferimentos, mas a sua carreira como piloto terminaria nesse dia, pois tinha descoberto da pior forma a fragilidade dos carros desenhados por Colin Chapman. E ele tentou processá-lo por isso, afirmando que foi a fragilidade do seu chassis lhe ter causado a sua invalidez. O processo demorou algum tempo, mas no final, Mike ganhou e a Lotus foi obrigada a pagar uma indemnização. A fama dos seus chassis, no pior sentido, já começava a surgir.

 

Hoje em dia, poucos se lembram dessa corrida, por não haver muitos registos cinematográficos, ou os acidentes não terem envolvido espectadores, como o que aconteceu cerca de um ano depois, em Monza, quando o Ferrari desgovernado de Wolfgang von Trips matou a ele e mais 14 espectadores. Eram tempos diferentes, sem dúvida...

 

Saudações D’além Mar,

 

Paulo Alexandre Teixeira 

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