A tragédia das 500 Milhas de 1964 Print
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Monday, 26 May 2014 22:11

 

A 30 de maio assinala-se meio século de uma das mais trágicas edições das 500 Milhas de Indianápolis, onde um grande acidente logo na primeira volta matou dois pilotos, vítimas de tanques cheios de gasolina e da sua fragilidade, bem como os resultados de carros demasiado velozes e instáveis numa determinada situação. O impacto desse acidente, visto um pouco por todos os Estados Unidos, teve consequências em termos de segurança e mudou mais um pouco a maneira como é visto o automobilismo.

 

Em 1964, nos Estados Unidos, estávamos a assistir a uma época de transição: os carros de motor à frente, dominantes, estavam a ser contestados desde o inicio da década por carros com motor traseiro, provenientes da Europa. Desde 1961, quando John Cooper trouxe um dos seus modelos para ser guiado por Jack Brabham, onde terminou num honroso nono lugar, que outros tentavam terminar com o domínio dos americanos na sua corrida mais importante – e mais rica – do automobilismo mundial, especialmente Colin Chapman, que em 1963 trouxe um modelo especial, de motor traseiro, para que o seu piloto, o escocês Jim Clark, vencesse no “Brickyard”, como é também conhecido o circuito de Indianápolis.

 

Nesse ano, Clark e Lotus voltavam a atacar a vitória, e lideravam um pequeno contingente europeu, que tinha entre outros, Dan Gurney e Jack Brabham. Clark e Gurney guiariam os Lotus-Ford, enquanto que Brabham iria guiar um Zink-Urschel Trackburner, que tinha um motor Offenhauser V8 colocado na traseira. Eles vinham a defrontar a fina flor do automobilismo americano, que tinha como os seus melhores A.J. Foyt, que nesse ano já tinha ganho por uma vez, em 1961; Roger Ward, que tinha ganho por duas vezes, em 1959 e 1962; Troy Ruttman, vencedor em 1952, e Parnelli Jones, o vencedor de 1963, depois de um duelo com Clark.

 

Jim Clark e Colin Chapman voltavam a Indianápolis em busca da "conquista da América".

 

O duelo da qualificação foi a dois entre Clark e Ward. O escocês começou a marcar terreno, mas o americano reagiu, fazendo uma média de 158,8 milhas por hora (257,3 quilómetros por hora). Bobby Marshman foi o segundo, e a primeira fila ficou completa com o carro de Roger Ward. Parnelli Jones foi o quarto, A.J. Foyt foi o quinto, Dan Gurney o sexto, numa grelha de 33 carros.

 

UM CARRO DESENHADO PARA O DESASTRE

 

Entre eles, qualificado na 14ª posição, estava o estreante Dave McDonald, de 27 anos, num carro batizado como o “Sears-Allstate Special”. Era um carro de motor traseiro, com um desenho que não estava propriamente adequado para as altas velocidades do traçado americano. Para piorar as coisas, as coberturas que o carro tinha para proteger as rodas – alegadamente para dar maior arrasto aerodinâmico – faziam com que o carro fosse difícil de guiar, como tinham demonstrado Graham Hill e Masten Gregory nos testes que fizeram previamente com o carro.

 

O Sears Allstate Special era um carro um tanto diferente, que tinha pontos positivos e negativos.

 

McDonald acabou por correr como ultima escolha, já que o volante tinha sido oferecido a vários pilotos, entre os quais um jovem Mario Andretti, que o recusou alegando falta de experiência. Mesmo quando McDonald aceitou correr, outros pilotos o tentaram dissuadi-lo, como Jim Clark, que o avisou no Carb Day: "E melhor saires desse carro, simplesmente abandona-o". Apesar dos avisos de toda a gente, McDonald decidiu prosseguir, julgando que com a sua experiência de circuitos poderia controlar o carro. Mas ele mal sabia que era uma bomba relógio prestes a explodir. Literalmente.

 

A 30 de maio, dia da corrida, haveria várias novidades. A Ford tinha colocado como seu “Pace Car” o seu novo Ford Mustang, e para além da normal transmissão pela rádio, a corrida iria ser transmitida em direto pela televisão, através de circuito fechado, para as salas de cinema da distribuidora MCA.

 

UMA BOLA DE FOGO NA SEGUNDA VOLTA

 

Com o mostrar da bandeira verde, Jim Clark partiu na frente, seguido de Parnelli Jones, o vencedor do ano anterior. No inicio da segunda volta, Bobby Marsham ultrapassa Clark e Jones para tomar o comando. Mas mais atrás, quando o fundo do pelotão ainda fazia a Curva 4, o drama acontece: Dave McDonald perde o controlo do carro, despista-se, bate no muro de protecção, causando uma explosão, e em ricochete bate em cheio no carro de Eddie Sachs, onde aconteceu nova explosão. Ambos os carros pegam fogo, e no incidente ficam envolvidos mais cinco máquinas: os de Eddie Duman, Chuck Stevenson, Norm Hall e dois futuros campeões de Indianápolis: Johnny Rutheford e Bobby Unser.

 

Largada das 500 Milhas.

 

O resultado foi catastrófico: Sachs teve morte imediata e McDonald foi retirado do carro gravemente queimado, tendo morrido duas horas depois no hospital. Duman também ficou gravemente queimado, mas recuperou, enquanto que Rutheford e Unser tiveram ferimentos ligeiros. Stevenson e Hall saíram incólumes dos seus carros.

 

Eddie Sachs era uma personalidade carismática nas 500 Milhas. Aos 37 anos de idade, era chamado como o “Entertainer das 500 Milhas” e o seu sonho sempre fora o de vencer aquela prova. Tinha feito a pole-position por duas vezes, em 1960 e 1961, e nessa edição esteve muito perto da vitória. A três voltas do fim, estava na liderança quando viu um dos seus pneus a degradar-se perigosamente. Não quis arriscar e foi para as boxes trocar a roda, abdicando da vitória, que foi para Foyt. Pouco depois, ao ser questionado sobre essa decisão, respondeu: “Preferi terminar como segundo classificado do que acabar morto”.

 

Mas Sachs tinha outra frase marcante: “Se não podes vencer, ao menos, dá espetáculo”. E ao longo da sua carreira, tinha vencido 28 corridas, especialmente no Sprint Car Championship, onde foi campeão em 1958. Em 1962, terminou mais uma vez no pódio, no terceiro posto, e em 1963, a sua corrida acabou na volta 181, vitima de um acidente na Curva 3. Em 1964, a sua qualificação tinha sido má, ao conseguir apenas o 30º posto na grelha de partida, na penúltima fila. Mas contava fazer uma corrida de recuperação, como tinha acontecido dois anos antes.

 

Ainda na segunda volta, McDonald perde o controle do carro.

 

Na volta anterior ao despiste, McDonald tinha passado cinco carros, um deles o de Rutheford. Ao vê-lo a tentar guiar o carro, disse: "Uau! Este tipo ou vai a caminho da vitória ou do desastre". Depois soube-se que o carro nunca tinha sido testado em condições de tanque cheio, pois o seu proprietário estava focado na velocidade de ponta. E para piorar as coisas, descobriu-se que os depósitos de gasolina do carro estavam precisamente no lado esquerdo do carro, e protegidos apenas com fibra de vidro e alumínio. E foi nesse lado esquerdo que foi atingido no primeiro impacto contra o muro interno da pista.

 

Rutheford, na altura com 26 anos e no começo da sua carreira, ainda se recorda do acidente, meio século depois: "Foi como tivessem colocado uma cortina preta do outro lado da pista”, começa por contar, numa entrevista feita este mês à revista americana “Racer”. "Eu vi um ‘flash’ de um carro vermelho e ele explodiu. Eddie (Sachs) estava bem na minha frente e eu pisava duro nos freios. Ele (Sachs) desviou um pouco para a esquerda e vi dois tubos de escape (McDonald) a destacarem-se das chamas, assim, eu virei à direita. Acabei por subir pelo carro do Eddie e acabei em cima do muro", descreve o piloto americano, que acabaria por vencer esta prova em 1974, 1976 e 1980.

 

O pavoroso acidente envolve vários carros.

 

Outro dos pilotos envolvidos e futuro vencedor das 500 Milhas, Bobby Unser, descreveu a maneira como se safou de uma morte certa naquele dia: "Eu não conseguia ver nada, apenas fogo e fumo, então eu só carreguei no acelerador, porque eu não queria ficar parado no meio dessa bagunça. Fechei os olhos e esperei pelo melhor."

 

Unser acabou por bater na traseira de Ronnie Duman, empurrando ambos os carros longe dos carros em chamas de McDonald e Sachs, onde ele deslizou para trás contra a parede interior em chamas. Então o Novi bateu Watson roadster de Rutherford com ambos os carros a arrastar-se na pista, mas fora daquele purgatório. Ambos acabaram com ferimentos leves, mas não prosseguiram a corrida. Rutheford, pouco depois, reparou num objeto brilhante na sua panela de escape. Era um colar com um limão como amuleto e estava no pescoço de Eddie Sachs.

 

UM ELOGIO FUNEBRE PARA A HISTÓRIA

 

Parte dos destroços voam na direção da arquibancada.

 

Dois dos pilotos que correram naquela tarde, mas não estiveram envolvidos no acidente, foram Parnelli Jones e A.J. Foyt. O primeiro estava preocupado com a sorte de um amigo seu, o outro pensava que o acidente tinha sido bem mais grave. "Tudo o que eu conseguia pensar [naquele momento] era meu amigo (Jim) Hurtubise, porque ele tinha uns 100 litros de combustível a bordo. Eu imaginei que ele estaria bem no meio dele, até que ele parou ao meu lado e acenou.", disse Jones.

 

“Eu pensava que as arquibancadas estavam em chamas”, disse Foyt.

 

A corrida ficou parada por cerca de hora e meia, para limpar a pista e retirar os destroços. O carro de Sachs foi coberto e retirado para uma das boxes, para que assim pudessem tirar o corpo dele fora do alcance das câmaras. Durante esse tempo, Tom Carnegie, “a voz” do Indianápolis Motor Speedway, deu a noticia da morte de Sachs, e logo a seguir, Sid Colins, o narrador para a rádio, fez um elogio fúnebre improvisado que ficou para a história:

 

"Você ouviu agora mesmo o anúncio nos altifalantes. Não há um som. Os homens estão tirando seus chapéus. As pessoas estão chorando, mais de trezentos mil fãs, por aqui... Sem se moverem, em pura descrença. Alguns homens tentam conquistar a vida de uma série de maneiras. Por estes dias, nas nossas tentativas [de subir] ao espaço exterior, alguns homens tentam conquistar o universo. Os pilotos são homens corajosos que tentam conquistar a vida e a morte, e calculam sempre os riscos. E nas nossas conversas com eles ao longo dos anos, eu acho que nós sabemos os seus pensamentos em relação à corrida: eles tomam isso [o risco] como fazendo parte dela.

 

Extinto o fogo, a cena com os destroços era aterradora.

 

Ninguém se mexe na pista. Eles estão de pé, silenciosamente. Um piloto de corrida que deixa esta terra mentalmente, quando ele se amarra no cockpit, para... tentar o que para ele é a sua maior conquista que ele pode fazer, estão ciente das probabilidades; e Eddie Sachs sabia das suas chances. Ele era sério e frívolo. Era divertido. E um cavalheiro maravilhoso. E assim como os astronautas fazem, talvez esses garotos na pista de corrida dão o seu melhor sem pedirem nada em troca. Se forem bem sucedidos, eles são heróis, e se eles falharem, ao menos eles tentaram. E foi o desejo de Eddie, tenho certeza, e tentou sempre com tudo o que tinha.

 

Assim, a única maneira saudável de talvez abordar esta tragédia da perda de um amigo como Eddie Sachs é saber que ele teria queria que enfrentá-lo, como ele fez: como aconteceu e não como gostaríamos que tivesse acontecido. É a vontade de Deus, eu tenho certeza, e devemos aceitar isso. Estamos todos em alta velocidade em direção à morte, à taxa de 60 minutos a cada hora. A única diferença é que nós não sabemos como acelerar mais rápido como Eddie Sachs fez. Assim como a morte tem mais de mil portas, Eddie Sachs abandona esta terra num carro de corrida. E conhecendo como conhecemos Eddie, assumo esse era o jeito que ele gostaria que fosse...

 

Byron disse... 'aqueles que amam os deuses, morrem jovens". Eddie tinha 37 anos. Para sua viúva Nancy, e para os seus dois filhos, estendemos as nossas condolências. Este rapaz fez aqui a pole-position em 1961 e 1962 [sic], e era um orgulhoso piloto desta corrida.

 

Bem, como fazemos em Indianápolis e nas outas corridas, e como o Campeão do Mundo Jimmy Clark eu tenho certeza que iria concordar, e ele correu um pouco por todo o mundo: a corrida continua. Infelizmente, a partir de agora, sem Eddie Sachs. E nós iremos reiniciá-lo daqui a alguns momentos."

 

A TRISTE VITÓRIA DE A.J. FOYT

 

A corrida prosseguiu com Clark a ficar com o comando, com Marsham de Gurney logo a seguir. Parnelli Jones era o quarto, aguentando as investidas de A.J. Foyt. Pouco depois, Marsham passou o escocês e começou a afastar-se do Lotus, até que na volta 39, um tubo de óleo se rompeu e ele acabou por abandonar a corrida.

 

A corrida foi retomada e A. J. Foyt duelou contra Paarnelli Jones (acima) e Roger Ward.

 

Clark ficou com o comando, mas foi de pouca duração: os pneus Dunlop que tinha calçados não aguentaram o ritmo e na volta 46, rebentaram com um dos aros das rodas do seu Lotus. Assim sendo, a luta pela vitória ficou-se entre Jones, Foyt e Roger Ward. Mas na volta 55, Jones reabastece e as correm mal, com uma fuga de combustível e subsequentemente, o carro fica a arder. Jones pula do carro e perde as suas chances de vitória.

 

Foyt fica com a liderança e resiste às pressões de Ward, que vinha num Watson de motor central, e vai ser assim até à meta. A segunda vitória de Foyt nas 500 Milhas de Indianápolis acabaria por ser a última de um motor dianteiro na pista americana, numa corrida desgastante onde apenas cinco carros acabaram na mesma volta do vencedor, e onze deles chegaram ao fim.

 

Contudo, 50 anos depois, Foyt ainda fala com amargura desse dia: "Foi um dia muito difícil. Perdemos dois bons rapazes, e que tiraram qualquer alegria naquela minha vitória."

 

Nos dias a seguir ao acidente, com as televisões a mostrar o que tinha acontecido nos mais horríficos detalhes, alguma imprensa se revoltou com o acontecido. Jornais como o “Washington Post” e o “Chicago Tribune” fizeram apelos para que a corrida fosse pura e simplesmente proibida, e houve ataques a USAC (United States Auto Club) por deixar que os carros tivessem quantidades ilimitadas de combustível. Assim sendo, eles decidiram efetuar mudanças drásticas, em nome da segurança: proibiu-se a gasolina e foi substituída poe metanol, e os depósitos de combustível foram modificados, no sentido de estarem protegidos e situados na parte central do carro, para evitar explodir em caso de acidente. Para além disso, os carros teriam de fazer um mínimo de duas paragens na corrida. Estas modificações, feitas com a ajuda da Firestone e da Goodyear, entraram em vigor a partir de 1965.

 

A. J. Foyt conquistou sua segunda vitória em Indianápolis , mas a comemoração foi discreta.

 

Uma inesperada consequência dessa trágica tarde foi o elogio fúnebre de Sid Collins. Apesar de ter sido absolutamente improvisado, muitos ficaram impressionados com ela que nos dias seguintes, ele recebeu mais de trinta mil cartas a pedir uma transcrição dela. Hoje em dia, mesmo passado meio século, ainda é impressionante lê-la e ouvi-la.

 

Para dois dos protagonistas daquele acidente, têm consciência de que tiveram muita sorte em saírem vivos. Bobby Unser, na entrevista à “Racer” e ao ver as fotos do acidente, teve uma revelação: "Eu não fazia idéia de que tinha havido duas explosões até que eu vi esta imagem. Eddie não teve qualquer chance, não foi? Diabos, apenas mais um ou dois segundos e ou eu ou o Johnny estavamos no lugar dele."

 

Quanto a Rutherford, quer acreditar que foi o destino que o safou de uma morte certa. "Tive uma carreira muito feliz", refletiu. "Especialmente nesse dia. Simplesmente, não era a minha hora."

 

Saudações D’Além Mar!

 

 

Paulo Alexandre Teixeira

 

 

 

 

Last Updated ( Friday, 30 May 2014 14:48 )