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A fantástica tecnologia do gasogênio PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Saturday, 09 April 2011 20:53

 

 

Muitas pessoas no Brasil possuem carros com motores “flex”, prontos para o uso de qualquer mistura de gasolina e etanol ou um dos dois apenas. Alguns tem ainda uma terceira opção, com o GNV, o gás natural veicular, sobre os quais alguns motoristas tem algumas queixas, como a perda de desempenho e a perda de espaço no porta malas.  

 

Quem ainda não ouviu um amigo ou conhecido que tenha o carro movido com GNV falar que seu carro é “6 cilindros... 4 no motor e 2 na mala!” Bons tempos em que temos direito de opção, mas houve uma época em que esse direito praticamente deixou de existir... e o combustível que movia a frota brasileira também! 

 

Durante os períodos das guerras mundiais, o abastecimento de combustível para a população civil foi seriamente afetado. Após a I Guerra Mundial, alguns países começaram a fazer experiências com combustíveis alternativos e um deles foi o gasogênio. 

 

O estudo que começou na Inglaterra, no final da década de 20, e continuou por toda a década de 30 visava ter uma alternativa em caso de uma necessidade, o que acabou acontecendo com a eclosão da II Guerra Mundial. No período de testes, puderam ser vistos em Londres veículos comuns e mesmo ônibus movidos com aquela tecnologia alternativa.  

 

 

O uso do GNV faz com que seja necessário a instalação de cilindros nos portamalas. Um transtorno para se obter o benefício.

 

O motor adaptado para gasogênio funcionava com os gases (nitrogênio, hidrogênio, monóxido de carbono, metano), que eram obtidos pela queima do carvão ou da lenha. Com o gerador carregado com cerca de 15 kg de carvão, acendia-se um pedaço de estopa ou algodão embebido em combustível líquido e colocava-se sobre a chama do gerador. O funcionamento não era imediato: a formação do gás no gerador levava de 5 a 10 minutos.



Dada a demorada partida, o gerador passava a receber água, colocada em um reservatório elevado, para que o calor a fervesse e o vapor resultante se misturasse com os gases, alimentando o motor, após passar por vários filtros. O uso do gasogênio precisava que uma volumosa e pesada instalação fosse montada, seja na traseira (o mais comum) ou na frente do veículo. O peso do sistema superava os 100 quilos! 

 

Carros movidos à lenha. 

 

O produtor do gás pobre era o carvão vegetal. Sua fabricação era feita primitivamente. A lenha, cortada em pedaços de 50cm de comprimento, aproximadamente, após ter sido amontoada na forma de cupim, é coberta com grossa camada de terra ou barro úmido. O fogo é ateado por um  furo onde foi deixado um espaço vazio.  

 

 

Nos anos 30, na Inglaterra, já se fazia uso do gasogênio, uma precaução para o caso de uma necessidade que abateu todo o mundo. 

 

A “arte” do fabricante de carvão reside em deixar queimar somente a quantidade de lenha suficiente para a produção do calor necessário para que a “matéria-prima” carbonize. Obtém-se isto, regulando a tiragem através dos furos no arranjo do “cupinzeiro”, que permitem a entrada de ar. Este processo é uma verdadeira destilação a seco da lenha, durante a qual a quase totalidade da umidade, bem como de ácidos e resinas, evapora. Perdem-se assim grande quantidade de “gases” que não podem ser aproveitados no processo. 

 

Para que se tenha uma idéia do que representa a parte perdida, é bom que se conheça o que um metro cúbico de boa lenha, destilada por um processo mais perfeito pode produzir: 120kg de carvão de primeira; 150 kg de ácidos diluídos; 20 kg de produtos alcatroados e uns 90 metros cúbicos de gases, à pressão atmosférica. 

 

O gerador de gás combustível. 

 

Apesar dos dizeres do croqui estar em espanhol, é possível para o leitor visualizar o caminho do carvão até se obter o combustível. 

 

Os dispositivos que geram o gás pobre, basicamente, podem ser de três tipos: tiragem para cima, para baixo e transversal . Como o processo interno é o mesmo, vamos usar o primeiro, por ter sido o mais comum utilizado aqui no Brasil.  

 

A primeira etapa é enchê-lo de pedacinhos de carvão, de dimensões as mais uniformes possíveis e bem “socados”. Em seguida fecha-se a tampa da grelha pela qual as cinzas serão eliminadas. É necessário, de início, provocar a tiragem com a ventoinha “V”. 

 

Forma-se assim uma zona de queima onda o oxigênio do ar e o carbono do carvão reagem, formando dois gases: o bióxido e o monóxido de carbono. Este último, insaturado, queima facilmente numa bela chama azul, igualzinha à do gás engarrafado ou de rua, que são seus “primos ricos”. 

 

 

Quando chegou ao Brasil, as empresas que vendiam automóveis já faziam propaganda dos veículos com o equipamento instalado. 

 

O dióxido de carbono, por se encontrar próximo ao fogo e em contato com mais carvão, é reduzido, isto é, transforma-se novamente em monóxido. Este fato permite melhorar o rendimento da produção do gás pobre e deve ser levando em conta no projeto dos geradores. 

 

Um dos principais problemas do sistema é a presença do oxigênio, um elemento um tanto indesejável em proporções não planejadas. A única maneira de evitar que haja uma sobrealimentação de oxigênio é agir como o fabricante de carvão: regular o fluxo do ar que ativa a zona do fogo. Nos motores de regime constante, como os estacionários, isto é um pouco menos difícil, se bem que as cargas a que estão sujeitos também variam. Nos automóveis, porém, o processo apresenta-se mais complexo, pois além da variação das cargas, varia também, e enormemente, o regime de rotações. 

 

Daí se conclui que, nos motores estacionários, o controle de ar deveria ser feito por um dispositivo automático, ao passo que nos motores de automóveis tal controle somente poderia ser efetuado “à sentimento”.  

 

O caminho entre o gerador e o motor. 

 

Quando se está numa multidão e a massa de pessoas se desloca, as pessoas acabam “indo com o fluxo”, independentemente de se estar querendo seguir naquela direção. Assim, o nosso gás pobre, ao sair do gerador, carrega pó de carvão, cinzas e destilados ácidos, além de vapor d’água. Sua temperatura, inclusive, é de cerca de 800ºC nessa situação, sendo assim, é preciso resfriá-lo.  

 

 

A "usina de força" pata movimentar a frota civil nos países dependentes da importação de combustível era um monstrengo de 100Kg. 

 

O estágio seguinte ao gerador submete o gás pobre a atravessar uma serpentina, na qual as impurezas mais pesadas depositam-se pelo efeito da força centrífuga, sofrendo, inclusive, abaixamento de temperatura.  

 

Em seguida, passa por um ou dois filtros, que retêm as impurezas menores, resfriando-o ainda mais. Os filtros, muitas vezes um grande saco de algodão ou flanela, eram posicionados de forma a que fossem facilmente acessíveis para limpeza. Além destes, existiam outros tipos, como os de banho de óleo, análogos aos filtros de ar. 

 

Finalmente, o gás pobre, limpo, está pronto para ser aspirado pelo motor, estando a aproximadamente uns 20º C acima da temperatura ambiente. Contudo, para que houvesse combustão do mesmo era preciso receber de 1 a 1,5 partes em peso de ar, para formar a mistura combustível e isto é feito pelos “misturadores”, de funcionamento análogo ao carburador.  

 

 

Cenas urbanas 1: Os carros transitando no centro de São Paulo movidos pelo gasogênio. Hoje em dia seria isso viável?

 

Existiam vários tipos de misturadores, sendo o de mistura anular, bastante eficiente. Observemos que o motor a gasolina ao ser adaptado para gasogênio, devia ter seu avanço aumentado, porque o gás pobre queimava mais devagar. Inclusive, a taxa de compressão devia ser acrescida. Mesmo assim, o motor a gasogênio produz até pouco mais de 60% de sua potência original. 

 

A opção (ou a falta dela) pelo Gasogênio. 

 

No final dos anos 30, o Brasil já possuía uma frota considerável de veículos automotores... e nenhum poço de petróleo! Na época, nem existia a PETROBRAS e alguns americanos vieram até aqui e disseram que o território de dimensões continentais era desprovido de jazidas do ouro negro (contestados pelo escritor Monteiro Lobato, que mostrou ter razão anos depois, com a descoberta de petróleo no recôncavo baiano anos depois).  

 

A verdade é que importávamos toda a gasolina que consumíamos e, com as complicações de logística, esforços de guerra por parte de quem nos vendia combustível e problemas na produção de derivados, o Brasil ficou numa situação delicadíssima. Foi a tecnologia do gasogênio que fez com que a nossa frota não ficasse parada. 

 

 

Cenas urbanas 2: Centro do Rio de Janeiro - capital federal na época. Getúlio Vargas assinou o decreto para que a frota fosse convertida. 

 

Para impedir um colapso nos meios de transporte, o governo de Getúlio Vargas incentiva a substituição da gasolina por um sistema inusitado: o gasogênio. Destinado principalmente a táxis e veículos oficiais, mas logo a frota privada – para não ficar encostada nas garagens e guias das ruas pelo país a fora – também aderiu ao sistema. 

 

Em 3 de agosto de 1940, o decreto-lei nº 2.526, regulamentava a importação de equipamentos, a construção dos mesmos e a utilização do gasogênio como combustível alternativo para a frota brasileira. Como, inicialmente, o Brasil não possuía construtores de equipamentos de gasogênio, empresas que iniciaram a produção dos mesmos na Inglaterra trataram de buscar o novo mercado brasileiro, como a “Koela” e a “Lorenzetti” (a mesma dos chuveiros elétricos). Posteriormente surgiram os equipamentos produzidos pela Laminação Nacional de Metais, pela Securit e e pela Gasogênio São Paulo, esta última pertencente ao piloto Chico Landi.



Velocidade no sangue. 

 

Bom, como estamos em um site de velocidade e o país já tinha o hábito das corridas inserido em sua cultura, não demorou muito para que começassem a surgir as primeiras provas com os carros adaptados ao combustível alternativo. 

 

O pioneirismo gaúcho falou alto e os pilotos das carreteras trataram de se adaptar, disputando a primeira prova com carros movidos pelo novo combustível no extinto autódromo do Cristal, em 1941. Os três primeiros colocados foram Norberto Jung Ford/Gasogenio Berta; Catharino Andreatta Ford/Gasogenio Rimoli; e Dirceu Oliveira Ford/Gasogenio Berta (este Berta não era o Mago Oreste, que naquela altura ainda era um menino).  

 

 

Não eram apenas os carros particulares que passaram a usar o gasogênio. A frota de ônibus e caminhões também usava. 

 

Pouco tempo depois, Interlagos passou a ser palco de diversas provas e Chico Landi foi ao longo de todo período da guerra, o grande “bicho papão” das provas. Além de um grande piloto, ele conhecia a fundo o processo, uma vez que fabricava equipamentos, e sempre sabia como tirar mais para andar mais rápido. 

 

A coisa ficou tão séria que o Automóvel Clube Brasileiro instituiu um Campeonato Brasileiro de Gasogênio. Na primeira prova foram 24 carros inscritos (não havia número impar estampado, somente números pares - ex: o 2 era o carro do Dr. José Giorgi de Bento Gonçalves, o 4 era do Guaraci Almeida Costa de Passo Fundo, o 6 (alias o único carro a lenha), era do Ari Burlamaque de Passo Fundo, e por ai vai (o Caetano era o 10, o Júlio Andreatta era o 14, o Catharino Andreatta era o 24).

 

A largada foi às 8 horas, com previsão de 15 voltas, perfazendo um total de 225 kms - nunca houve tantos inscritos, e a corrida foi assistida por 30 mil pessoas (isso na década de 40!). O Catharino ganha a prova com seu Ford-Gasogênio Rimoli (o José Rimoli era amigo dele), com uma média de 76,26 kph (nada mal para uma lareira ambulante). Assim como um dia muitos temem o fim ou o escasseamento crítico das reservas de petróleo, o mesmo poderia ocorrer com a matéria prima que movia os carros – a lenha.

 

 

Os pilotos brasileiros não demoraram sequer um ano desde a adoção do gasogênio até a primeira corrida. Teve até campeonato!

 

Isso acabou acontecendo no final de 1944 e metade dos ônibus de São Paulo ficaram estacionados. Os transeuntes, já escaldados em terem que se esquivar entre os carros, se admiravam de ver as ruas vazias.   

 

E ele quase voltou... 

 

Terminada a guerra e com o mundo voltando ao normal, as coisas voltaram ao que eram antes e a normalização da produção dos derivados de petróleo fizeram com que os carros movidos a gasogênio virassem peças de museu e até mesmo sua importância foi se perdendo na história. 

 

Contudo, no final da década de 70, com o agravamento da crise do petróleo atingindo condições alarmantes em alguns países como o Brasil, que ainda dependia enormemente de petróleo importado, eis que a antiga solução voltou a ser estudada por alguns setores e foi até matéria da principal revista automotiva do país: a Quatro Rodas. 

 

 

No auge da crise do petróleo, houve quem defendesse a volta do uso do gasogênio no Brasil para reduzir a importação de petróleo. 

 

Na matéria, foi equipada uma camionete C-10 da GM, com o equipamento montado na caçamba da mesma. O engenheiro Eduardo Moura, da Lorenzetti, a mesma que fez equipamentos nos anos 40 aqui no Brasil, estava convencido de que a grande vantagem desse combustível seria sentida no interior, onde o preço do carvão é bem mais acessível. 

 

A matéria foi acompanhada por um dos maiores especialistas em motores do país, Jorge Lettry, chefe da extinta equipe Vemag foi muito prudente, pesando os prós e os contras de se partir para uma busca neste sentido. Na época, o Proálcool estava no início, mas o gasogênio tinha até defensores, como um motorista da Lorenzetti que “pilotava” um carro movido com o combustível alternativo há uma década! 

 

 

Hoje, os carros movidos a gasogênio são peças de museu em diversas cidades nos EUA e na Europa. Um passado a não se esquecer. 

 

No final, a matéria não toma partido, aponta os pontos em que a diferença pesa no bolso (por incrível que possa parecer, era realmente mais barato, mesmo comprando-se carvão nos supermercados das grandes cidades. No interior, a vantagem aumentava), mesmo sem levar em conta que haveria uma elevação dos preços com o aumento da procura. Além disso, se em 1944 faltou carvão, imagine nos anos 80, com uma frota dezenas de vezes maior. 

 

Em todo caso, em tempos em que a FIA quer criar uma categoria para carros elétricos e – quem sabe – dar um salto para o futuro, pensemos duas vezes antes de reclamar ou tripudiar dos nossos carros movidos a GNV e seus “cilindros extras”. Nossos avós passaram por coisas bem piores! 

 

Um abraço, 

 

Luiz Mariano

 

 

Last Updated ( Monday, 11 April 2011 20:49 )