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Os Davis e os Golias: Convivência pacífica evita conflitos desnecessários PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Thursday, 15 April 2021 19:42

Minha primeira experiência profissional após formado foi atuar na engenharia de métodos e processos da Ford na fábrica do Ipiranga, no local onde hoje há um shopping. Ali eram montados os caminhões série F, as picapes F-1000 e os, então modernos caminhões Cargo. Conhecer bem a montagem e os meandros do produto é algo recomendável principalmente para os iniciantes, mesmo aqueles que querem é participar do desenvolvimento, particularmente dos testes. Para saber o valor de uma moeda, é necessário conhecer (bem) os dois lados dela.

 

No primeiro dia meu supervisor perguntou se eu gostava de carros. Fácil saber qual foi minha resposta. Ele, então, gentilmente, me disse: “Esqueça tudo; caminhão é máquina e deve ser tratado como tal”. Menos emoção, mais razão. Na sequência, ele mencionou também algo que (penso eu) todo aluno de autoescola deveria saber; trata-se do significado dos números nas laterais da cabine dos caminhões. Bom, isso eu já conhecia, porque tinha feito a lição de casa antes. Mas, só passei a dar mais valor quando pude dirigir os “brutos” anos depois em avaliações e testes de desenvolvimento.

 

 (Arte: mercartornet.com)

 

Ele usou como exemplo o CEP da minha residência (02217), tirou o zero e me pediu para dizer o que significavam. Também pode ser 22170 nessa que é a metodologia alemã de identificação de veículos de carga. São 22 toneladas de capacidade total, ou seja, o próprio peso (na verdade, massa) do veículo mais o payload (carga paga ou útil em inglês) levados pelos 170 cv do motor.

 

Essa era apenas uma das várias configurações produzidas naquela fábrica; daí a razão dele mencionar que caminhão é máquina, não veículo de passeio.

 

 Nesta fábrica eram produzidos diversos modelos e versões para atender consumo específico (Foto: uol.com.br/carros)

 

Discutir a relação

É de praxe nas publicações deste ramo a presença de dados informativos do torque máximo, bem como a potência máxima. Importante também é a rotação em que ocorrem. Se a informação de torque nos leva a melhor aproveitar o rendimento térmico do motor nas trocas de marcha, a de potência nos conduz ao poder de obter velocidade máxima.

 

Outra relação pouco utilizada, mas interessante, é a de peso versus potência; aquela que diz quantos quilogramas cada cv tem de carregar. Justamente o que parecem dizer os números na lateral das cabines de caminhão. Eled nos deixa claro quem é mais rápido, se considerarmos apenas a carga que cada cv tem de levar. Voltando ao exemplo do meu supervisor, bastaria colocar um motor de 200 cv naquele caminhão para que ele levasse as mesmas 22 toneladas bem mais rápido ao seu destino, certo?

 

Não é bem assim. Isso só é factível nos automóveis onde a massa é pouco ou praticamente em nada alterada. Também nos pesados? Não exatamente. Depende da aplicação (leia-se onde e qual utilização) do caminhão para que ele receba na fábrica as versões adequadas de suspensão, freios e transmissão (caixa de câmbio, reduzida, cardã ou cardãs e diferenciais do eixo traseiro).

 

Mais um fator diferenciador nos pesados é a cilindrada dos motores; muito maior, e com isto controversa a relação potência por litro (ou potência específica). Automóveis têm menos cilindrada porque precisam de agilidade enquanto os caminhões precisam de força e durabilidade. É o cv “puro sangue” de um carro esporte versus um Bretão nos comerciais.

 

Um exemplo de volume, potência e capacidade é o antigo FNM. Equipado com um motor de 11 litros de 175 cv (antes uma versão de 150 cv) a apenas 2.000 rpm, sua capacidade de carga era de 23 toneladas. Nos anos 1960, configuração bem próxima (2317) de uma das que viriam no Cargo por volta de 25 anos mais tarde. Mas, era lento, muito lento. Chegava na máxima de 70 km/h, algo que o Ford faria facilmente já em uma das marchas intermediárias. Estranho. Por quê? Questão de opção de aplicação.

 

 Um desbravador que ajudou na expansão rodoviária numa época de poucas opções no Brasil (Foto: chicodaboleia.com.br)

 

Ocorre que o FNM recebeu, entre outros, o apelido de “João bobo” porque arrastava qualquer coisa de qualquer peso e tamanho. Uma das razões, como brincam alguns dos contemporâneos, que não era necessário conta-giros; dava para “ver” a rotação da polia do motor. Outra razão era a transmissão. Ele era força bruta pura. “Pau pra toda obra”. Não havia variedade de caminhões naquela época.

Atualmente, por exemplo, pode ser grande e “fraco” por carregar massas menos densas (colchões) ou ao contrário, pequeno e “parrudo” ao levar cargas bem densas (blocos de concreto). Disponibilidades inexistente em outros tempos. São diversas possibilidades de múltiplas configurações que tornam o “bruto” mais rápido ou mais lento. A identificação nas laterais da cabine é útil, dá uma ideia e ajuda a entender, mas não determina totalmente para quem está de fora, como ele vai se comportar em movimento. E isto sim pode ser muito perigoso.

 

Dois pesos, duas ou mais medidas

Se as relações acima são técnicas, há outra de efeitos mais psicológicos. É a relação peso-peso, mais exatamente, massa-massa. Refiro-me à relação entre o que é conduzido e quem conduz.

 

Como exemplo, pensemos numa pessoa de 70 kg conduzindo diversos tipos de veículos. Comecemos por uma motocicleta de 140 kg; a relação será de 2 para 1. Se colocarmos o mesmo indivíduo num automóvel de 1.400 kg, a relação será de 20 para 1; dez vezes maior que a anterior. Subindo a escala e com a mesma pessoa na boleia de um caminhão médio, aqueles ao redor de 14.000 kg, teremos relação de cada 200 kg do veículo e carga para apenas 1 kg do condutor. E assim por diante.

 

Já percebeu onde quero chegar, não é? Está ligado à capacidade que temos de multiplicar nossas forças e mobilidade por meios mecânicos e à nossa responsabilidade no comando de uma máquina. E não só, mas também, à complexidade, diversidade e relacionamento no trânsito.

 

Infelizmente, muitas pessoas só vão notar sua fragilidade se, em vez dos veículos citados, estiverem no comando de uma simples (e mais leve que ela) bicicleta...sem motor. Quem nunca dirigiu veículo pesado, precisa entender que não é algo corriqueiro e simples.

 

 Ampla gama de tipos e objetivos implica em distintas formas de manejo e controle do peso (foto arte: cleanpng/radio cartoon)

 

Divergência nos contrários

Alguém, não me lembro quem, já disse que “democracia é a livre convivência dos contrários”. Pelo que vimos acima, nada mais conflitante que os diversos tipos de veículos que convivem no trânsito. E nada menos democrático, também.

 

Bicicletas, motocicletas, automóveis e seus mais variados tipos de carroceria e tamanho, picapes, vans, caminhões de chassi único (leves, médios e pesados), caminhões articulados (cavalo e carreta), caminhões reboque (Romeu e Julieta) e ônibus. Tem de tudo ao mesmo tempo e ocupando os mesmos lugares. É imprescindível respeitar certas peculiaridades inerentes a cada tipo e tamanho de veículo.

 

As leis da Física presentes no dia a dia ajudam a tomarmos consciência e postura adequada para uma pacífica convivência dos “contrários”. A que fala sobre a quantidade de movimento deixa claro que parar um corpo em movimento está diretamente relacionado à sua massa e velocidade; ou seja, quanto mais pesado e maior a velocidade, mais difícil e mais distância para a imobilidade. Se já é difícil parar um caminhão nas ruas, imagine em alta velocidade nas estradas. Fique bem distante também daqueles que estão vazios (e mais rápidos) ou com carga mal fixada; ela tenderá, por inércia, a continuar o movimento.

 

Assim como parar é complicado, ganhar velocidade implica em esforço extra que todo motorista de caminhão e ônibus procura evitar, por exemplo para enfrentar uma subida. Observe a aproximação dele em relação aos veículos da frente; se a velocidade relativa for maior, com certeza ele vai trocar de faixa para não perder o embalo. Certo, errado, discutível ou não, previna-se!

 

 Os “brutos” na verdade precisam é de espaço e tempo para suas manobras, mas às vezes abusam disso (Foto: Doutor multas)

 

Questão de localização

Veículos são pesados porque são grandes. Ônibus e caminhões são facilmente vistos, mas, ao contrário do que muitos pensam, não enxergam muito do que se passa ao redor. Na frente, tudo bem, mas não fique lá pelas razões já expostas acima. E não é só na traseira que há pontos cegos para o condutor dos pesados, nas laterais também. Por isso, tenha muita certeza ao se colocar ao lado deles numa pista simples para ultrapassagem, porque você pode já estar fora do ângulo dos retrovisores dele, e ele também resolva fazer a ultrapassagem no veículo à frente.

 

Diminuir ou aumentar a velocidade é difícil, mas alterar abruptamente uma trajetória é acidente na certa para os de carga. Em estradas sinuosas ainda pior. A questão novamente é esclarecida pela Dinâmica, mais precisamente pelo CG – Centro de Gravidade. Enquanto nos automóveis é praticamente imutável, nas picapes, vans, ônibus e caminhões varia conforme a carga no momento e no uso.

 

Altas, líquidas e as vivas causam mais tensão ao condutor...e mais risco aos que estão ao redor. Situação particularmente delicada nos caminhões, pois o CG depende também da configuração, do tipo e quantidade de carrocerias. Sim, no plural, uma vez que temos as versões de implementos rebocados.

 

Enquanto automóveis, vans e ônibus têm CG único, as picapes e caminhões sobre chassi têm dois, um para a cabine e outro para a carroceria, e o desta varia com a carga (tamanho, peso, distribuição). As reações são conectadas pelo chassi de longarinas, mas não imediatas entre si; há um descompasso. As ações ao volante precisam ser antecipadas e suaves para que a carroceria saiba a intenção do motorista, a despeito da diferença de espaço e tempo entre ela e a cabine. Imagine então aquele caminhão que reboca duas, três ou mais carretas carregadas de cana-de-açúcar. Cada uma tem seu CG e só recebe a informação dada ao volante depois que ela ocorreu. Melhor ficar longe, principalmente nas curvas.

 

 Distância, respeito e prudência de ambos os lados ajudam a evitar situações delicadas (Foto: Rádio Aliança)

 

O pequeno, o grande e o malvado

A maioria de veículos na frota circulante é de automóveis; caminhões representam algo como 5% no Brasil. No contraponto, estão envolvidos em aproximadamente 42% dos acidentes fatais. Parece que é o malvado, mas dá o que pensar. Se é certo que há vários motoristas mal preparados para conduzir veículos comerciais, também é fato que vários não “cresceram” junto deles no desenvolvimento tecnológico. Com tanta assistência eletroeletrônica e hidráulica nos sistemas, um motorista de hoje provavelmente não tem a noção daquela relação peso-peso em movimento que o de um FNM nitidamente possuía. Se não for bem formado, pode ter a impressão de que passeia num automóvel.

 

Em minha modesta opinião, um motorista de veículos pesados só poderia receber habilitação em escala progressiva; para mais carga, somente depois de tempo e experiência ao volante de valores menores. Mas há muitos dos verdadeiramente profissionais, experientes e que sabem além de conduzir o veículo, também conduzir as situações com aqueles motoristas, principalmente os de automóveis, que não deveriam nem conduzir patinete sem motor.

 

Naquela lista de veículos acima mencionada, cada um é Davi para os Golias e ao mesmo tempo é Golias para os Davis. Em outras palavras, pequeno ou grande; depende. Na famosa contenda, seja ela lenda ou fato histórico, o que importa é o simbolismo de que a agilidade de Davi foi fator essencial para vencer a maior estatura e armadura de Golias. Mas vale lembrar que naquele tempo não havia democracia e a luta foi necessária não porque Golias era malvado.

 

Por aqui, em nossos tempos e desde sempre, mais compreensão, cidadania e entendimento fazem falta e não deveria haver nenhum tipo de luta entre os Davis e os Golias do trânsito.

 

Mário Pinheiro