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Os esqueletos do nosso armário PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Friday, 26 June 2020 23:50

Este é o último ano da segunda década do século XXI. No tempo em que vivemos, espera-se que já estejamos mais avançados em termos de costumes do que no tempo dos nossos avós. Contudo, num tempo em que grande parte dos países do mundo são democracias, onde as minorias estão protegidas por lei, onde deveria haver paz, igualdade e comunhão, ainda há quem diga que "antigamente é que era bom". Um antigamente onde uma minoria se considerava privilegiada, ancorada numa espécie de "povo escolhido" do qual não têm qualquer fundamento sem ser num totalmente preconceituoso. E num ano perfeitamente anormal, onde passamos por uma pandemia global, a pior em um século, um incidente na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, onde um policia sufocou um negro até à morte com o seu joelho em cima do seu pescoço para o imobilizar, causou revolta geral numa nação onde há muito se sente que o contrato social foi quebrado e uma minoria se sente discriminada, não na lei, mas na igualdade de acesso aos cuidados de saúde, educação, emprego, habitação, e sobretudo, proteção policial. E quando têm como presidente alguém que pretende dividir o país e não o unir, pior ainda.

 

Mas porque falo de George Floyd, Donald Trump, o racismo na América num sitio de automobilismo? E o que uma coisa têm a ver com outra? Imenso. Porque o automobilismo tem imensos esqueletos no armário. E é altura de falar deles. De uma modalidade onde o domínio do homem branco, do bicho homem tem sido tal que até espanta.

 

  No final deste mês de junho Bernie Ecclestone levantou mais polêmicas sobre a F1 e sua visão do mundo das corridas. 

 

Eu sabia desde há muito tempo que a Formula 1 não era exemplo para ninguém. Aliás, certo dia, Bernie Ecclestone disse que a modalidade pertencia aos velhos de 70 anos com Rolexs no pulso. Uma certa elite cujo único critério é a riqueza, e o resto é circo. Que se afirmava "apolitica" mas no passado correu na África do Sul, que foi a única modalidade que furava o boicote anti-racial contra um governo de minoria branca. E quando o resto do mundo condenou a sua atitude, encolheu os ombros e foi correr na mesma. Mas num tempo onde o melhor piloto da sua geração é um britânico filho de um negro e de uma branca, teve de ser ele a dizer à Formula 1 que havia um problema grave para ser tratado, depois de não ter visto qualquer reação a esse respeito. Hamilton descobriu que tinha de agir, ser cidadão, para que as pessoas no meio soubessem que havia uma vida lá fora.  

 

Mas quase ao mesmo tempo, discretamente, e no outro lado do planeta Terra, um jornal australiano descobriu que uma das poucas mulheres-piloto a andar nos V8 Supercars teve uma segunda vida mais... "caliente". Renee Gracie tem 25 anos e não teve uma grande carreira, apesar de ter corrido por duas vezes no Bathurst 1000. Largou a sua carreira no automobilismo em 2017 e agora descobriu-se que virou modelo erótico, com uma página sua no site onlyfans,com, onde por uma subscrição mensal de 12.95 dólares, os fãs poderão ver o que quiserem dela, e mostra tudo “full frontal”.

 

  Renee Gracie tentou ter uma carreira como piloto, mas depois de alguns anos, emagreceu e foi "fazer outra coisa"...

 

E a coisa causou furor: em uma semana, a sua página passou de sete mil para 12 mil subscritores. E pagando cada um os 12.95 de mensalidade, ela fez com que no fim de junho, irá receber mais de 155 mil dólares. Não querendo criticar as suas escolhas de vida porque já é adulta, estes exemplos fazem-me pensar sobre todos os esqueletos no armário que o automobilismo têm. E o comportamento do típico fã das quatro rodas e um volante.

 

Esse típico fã do automobilismo congelou-se num tempo que só existe na sua cabeça. Um tempo onde o piloto encara o perigo de morte em frente e terá uma vida curta. competindo uns contra os outros, e um erro é fatal. Essa era a visão do automobilismo nos primeiros anos do século XX, e muitos sonham com um tempo que não viveram. E nesse tempo que não viveram, os motores eram barulhentos, tinham quatro, cinco e seis cilindros em V, tinham cem décibeis, eram o mais leve possíveis, os pilotos apenas estavam protegidos com panos e… a sorte. E claro, eram todos homens brancos. O cheiro a gasolina, os mecânicos besuntados a óleo e os carros a guiar a 200 à hora em reta é, para muitos, paraíso.

 

 

Só que os tempos mudam e essa gente não aceita. Quer viver na bolha que ele próprio criou. Querem um exemplo? Nem vou longe. Na última década, a introdução de motores Turbo V6, sistemas híbridos de energia nos carros, um sistema de proteção da cabeça dos pilotos, de seu nome “halo”, bem como a criação da Formula E, que trata de carros elétricos, e a W Series, uma competição que junta as melhores mulheres numa “feeder series” para a Formula 1, bem como coisas simples como o fim das “grid girls” que mostravam mulheres como “decoração”, fez revoltar esse adepto “clássico”.

 

Não aceitam, e não querem aceitar. E quando há gente que se coloca do lado da justiça social, ali se vê o adepto no seu pior. Eu já encolho os ombros às bocas de pessoal que afirma que a Formula E é “para falhados” ou “são aspiradores e nunca gostarei disso”, entre outros insultos. Não querem saber que todas as construtoras estão lá representadas porque sabem que a eletricidade é o futuro e os dias dos motores a combustão estão contados. Dez construtoras na Formula E? A Formula 1 nunca teve nem metade disso, em termos históricos.

 

  Em 70 anos o automobilismo mudou muito e na Fórmula 1 podemos ver a diferença dos carros em 7 décadas de história.

 

Mas como já disse, o fã típico não quer saber. E se calhar, nem lhe interessa. Penso até que nunca gostou de automobilismo. Reclamar tem mais piada, digamos assim. Então porque falamos deles por aqui? Porque eles puluam nas redes sociais e estragam o nosso dia, digamos assim. E é essa mesma gente que, num tempo de pandemia como o nosso, acha que é tudo um exagero e fura confinamentos. São os mesmos que acreditam em teorias da conspiração e são anti-ciência. Logo, bem pensado, remam ao contrário o senso comum, do cidadão informado e sabe que a maré não está do lado deles.

 

E essa gente conseguiu estragar o automobilismo. Mas não é de agora. 

 

Porque como conheço a história do automobilismo, os exemplos menos dignificantes começaram a aparecer, como se fossem "popups" na minha cabeça: os regimes fascistas que viam nas corridas o seu motivo de orgulho nacionalista (nazis, fascistas e outros), as publicidades de marcas de tabaco, muito tempo depois de se saber que prejudicavam a saúde das pessoas, e só saíram apenas quando os governos os obrigaram a tirar dos carros, especialmente na União Europeia, no início do século XXI.

 

  Durante décadas as empresas de tabaco financiaram as equipes de Fórmula 1 e do automobilismo em geral.

 

Agora, eles foram obrigados a reagir. Meter arco-iris nos seus carros, para reconhecer o público LGBT pode ser bom, mas homenagear os pilotos LGBT que estiveram nas suas fileiras ao longo da sua história também poderia ser uma iniciativa louvável e conhecer as suas histórias, como Mike Beuttler e Lella Lombardi, que ainda tem o feito de ter sido a única mulher a pontuar num GP de Formula 1. 

 

E Hamilton agora usou o seu peso como estrela mundial para se colocar do lado dos que desejam justiça. No passado dia 20, marchou nas ruas de Londres, ao lado de milhares de outras pessoas, pedindo justiça por vidas negras, exigindo serem tratadas como gente. Isso aconteceu depois de ele ter criado uma comissão com o seu nome, para promover a diversidade no automobilismo, não só em termos de pilotos, como também em termos de engenheiros e mecânicos. E pouco depois, as Nações Unidas o terem pedido que fosse o seu embaixador dos Objetivos Gerais.

 

  Anonimamente, Lewis Hamilton foi para as ruas protestar contra o racismo.

 

O automobilismo é um livro bem colorido cheio de muitos pontos negros. Acho que seria boa altura de trazer para fora tudo isso e, de uma certa maneira, ajudar no conserto de uma sociedade cujo contrato social foi quebrado. O que falta ao automobilismo, e à Formula 1 em geral, é o reconhecimento que o mundo lá fora está a mudar. Que certas coisas que defendiam no passado agora não podem acontecer. Da mesma maneira que, como disse no parágrafo anterior, o tabaco era uma coisa lucrativa há 25 anos e agora não pode ser, tem de se adaptar. Não pretendo que haja cotas, nada disso. Pretendo que entenda que a tecnologia vai para os carros elétricos e que o tempo dos motores a combustão está a acabar. Que asneiras como “se isso acontecer, deixo de ver Formula 1” é mais uma ameaça vazia do que outra coisa, porque se morrermos, deixamos de ver Formula 1. Como costumo dizer, se quero ouvir barulho, desligo a TV, ligo a aparelhagem e vou ouvir Beethoven, que é mais harmónico do que algo a 110 decibéis.

 

 

Em suma, a mensagem é: estamos no século XXI. Portem-se como tal, sejam mais éticos, não persigam o dinheiro como se fossem sanguessugas. É um desporto que tem de ser reformado, tem de ganhar mais ética, e infelizmente, teve de ser uma pandemia para começarem a concretizar coisas como um teto orçamental nas equipas. E comecem a repensar algumas das vossas escolhas, porque alguns dos vossos fãs agradecem e se calhar, ganham toda uma nova geração.

 

Saudações D’além Mar,

 

Paulo Alexandre Teixeira 

 

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