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Recall - Parte 1: O paradoxo da Modernidade PDF Print E-mail
Written by Administrator   
Tuesday, 17 January 2017 16:39

Olá pessoal que acompanha o site dos Nobres do Grid,

 

Esperei pela virada do ano para coletar alguns dados e falar com mais propriedade sobre o assunto da coluna desta semana: Recall, mas antes vou falar um pouco sobre o automóvel. Aquele bem de consumo que tanto enche o imaginário do brasileiro em geral... todo mundo junta um dinheirinho pra poder comprar um carrinho velho pra dar uma volta no domingo (com o atual preço da gasolina, isso agora é coisa de uma vez por mês e olhe lá).

 

O automóvel é um paradoxo. Em princípio, é a mesma coisa que era cem anos atrás: uma caixa de metal sobre quatro rodas unidas por uma suspensão e movidas por um motor de combustão interna alimentado com combustível petroquímico. Em tudo o mais, no entanto, apenas para falar de produtos da minha área, o Ford Modelo T e o Fusion Hybrid estão a mundos de distância um do outro!

 

Durante muito tempo, muitas montadoras acharam que chegariam à liderança do setor se escolhessem certo em que mercado entrar, que tipo de veículo lançar e em que tecnologia apostar. Hoje, no entanto, uma tendência supera esses fatores na hora de determinar que empresas vão triunfar: a complexidade cada vez maior de veículos projetados em economias avançadas. O carro típico contém cerca de 2 mil componentes funcionais, 30 mil peças e 10 milhões de linhas de código de software.

 

 

Por que toda a complexidade? O automóvel é um objeto pesado que circula com rapidez pelo espaço público. Torná-lo seguro e reduzir seu impacto ambiental são questões importantes, previstas na regulamentação. Ao mesmo tempo, o custo elevado gera no consumidor expectativas sobre estilo, potência, dirigibilidade, confiabilidade e conforto. Servir a esses dois senhores resulta numa complexidade enorme. Os comentadíssimos Recalls da Toyota neste ano não foram uma anomalia; são, antes, um emblema dos desafios do setor — desafios que irão se intensificar à medida que um veículo passar a ter hardware, soft­ware, dispositivos de segurança e itens de conforto cada vez mais sofisticados.

 

Para satisfazer tanto exigências regulamentares quanto expectativas do consumidor é preciso administrar interdependências entre subsistemas (o que, de certa forma, é como opera o próprio setor automotivo, celebremente chamado por Peter Drucker de “indústria das indústrias”). Mas a empresa e seus projetistas não chegarão lá utilizando as melhores práticas de hoje.

 

Novas soluções trazem novos problemas.

 

Muitos engenheiros de produto gostam da simplicidade e da flexibilidade da abordagem modular. Isso, contudo, funciona melhor para produtos como eletroeletrônicos, que são pequenos e pouco invasivos, custam relativamente pouco, são usados basicamente no espaço privado e, em caso de falha, têm poucas consequências negativas além de irritar o usuário. Em contrapartida, a concepção de um automóvel requer coordenação intensa para controle de seus inúmeros aspectos, e sua cultura de engenharia prefere soluções únicas (não modulares). Comparado com o projeto de um carro — que exige cálculos avançados para a resolução de milhões de equações complexas simultaneamente. O projeto do iPad é aritmética básica.

 

 

Até aqui, o esforço das montadoras para lidar com a complexidade do automóvel se concentrou em investir em recursos para a solução de problemas ainda na prancheta. Aqui, contam com a ajuda de ferramentas de desenho digital e simulação para testar como cada um daqueles dois mil componentes se comporta sob tensão e para avaliar a interação entre todos. Além disso, as montadoras estão repassando a fornecedores parte importante do trabalho de concepção e teste; estão apostando no profundo conhecimento desses parceiros sobre os componentes que fabricam. Tudo isso ajudou a desenredar um pouco as coisas. As montadoras reduziram a complexidade da concepção e da produção de um carro — mas não a do veículo em si (pelo menos em mercados desenvolvidos). A adoção do desenho e de ferramentas de teste digitais encurtou o ciclo de vida do produto, mas deixou menos tempo para a resolução de problemas antes do lançamento e para testes funcionais.

 

O envolvimento crescente de fornecedores tira certos aspectos do projeto do controle direto da montadora — que, no entanto, continua sendo a responsável por eventuais problemas de segurança ou de outra natureza. É só ver o número crescente de Recalls em países desenvolvidos. Um Recall reflete a incapacidade de se cumprirem exigências regulamentares cada vez mais rígidas, bem como a maior sensibilidade do consumidor (e produtor) a falhas. Quanto maior a complexidade, mais Recalls haverá — o que não é necessariamente ruim se servir para aumentar a qualidade e segurança, mas sem dúvida é prova do ônus da complexidade.

 

 

Nenhum caso ilustra o desafio de integrar um sem-fim de peças, sistemas e processos tão bem quanto o Recall do Toyota Prius — devido a um problema decorrente da interação dos três elementos do sistema de freios. Na tentativa de aumentar a eficiência energética do veículo, o software que controla o sistema foi programado para se valer mais do freio regenerativo. O problema ocorre quando o carro está em piso irregular ou escorregadio. O software automaticamente faz a troca para o sistema ABS, o que dá uma sensação de queda repentina na capacidade de frenagem. Se o motorista frear depressa, os freios hidráulicos imediatamente entram em ação; se não, a troca para o ABS interrompe a desaceleração esperada pelo condutor, criando uma sensação de aumento de velocidade — mas sem aceleração real. O risco concreto para a segurança é zero (os freios seguem funcionando e param o carro se o pé continuar no pedal), mas o susto que o motorista leva foi suficiente para levar ao Recall.

 

Nem todo Recall tem causa tão complexa. Outro caso da Toyota, envolvendo problemas no pedal do acelerador de um grande número de veículos, teve origem em falhas no projeto de uma peça relativamente simples usada em diversos modelos. A fabricante, que não era do Japão, foi contratada dentro de uma iniciativa para diversificar a cadeia de suprimento e reduzir custos. Mas é algo que também se encaixa na tendência global de maior complexidade do produto: defeitos surgem em lugares inesperados — de simples peças de hardware como o pedal do acelerador a sistemas complexos de software.

 

 

Se a complexidade fez a Toyota tropeçar, o que será do crescente número de novas montadoras? Suas chances de sucesso são ainda menores do que as das grandes. O Tata Nano tem um projeto relativamente simples, feito para o consumidor de uma economia em desenvolvimento. Embora cumpra as normas da Índia (que não são as mais rígidas), teria de sofrer sérias mudanças para ser vendido nos Estados Unidos ou na Europa. O carro chinês vai ter de melhorar muito em dirigibilidade, suavidade, conforto, ruído interno e acabamento para cumprir a expectativa de alta qualidade em países desenvolvidos. Novas fabricantes de veículos elétricos terão de adquirir recursos de concepção e teste para cumprir as normas e garantir a perfeita integração das funções do veículo, algo esperado pelo motorista. Dominar a última palavra em tecnologia de transmissão já não basta.

 

Que empresas estão mais equipadas para projetar o carro do futuro? As que contam com o conhecimento sistêmico para coordenar todo o trabalho e os diversos parceiros envolvidos. Hoje, poucas montadoras de países em desenvolvimento e fabricantes de automóveis sustentáveis têm esse know-how. Isso não restringe a arena a montadoras já estabelecidas, nem garante que seguirão de pé em 20 ou 30 anos mais. Mas significa, sim, que novas concorrentes terão de percorrer um longo e lento caminho para se equiparar às veteranas. Sem isso, o máximo que a novata pode esperar é ocupar um nicho no mercado.

 

 

Além disso, o setor terá de enfrentar os demônios da complexidade por uma eternidade — ou pelo menos enquanto o consumidor seguir exigindo carros seguros, que poluam relativamente pouco, rodem bem e sejam bonitos e confortáveis. A lição deixada pelos Recalls da Toyota é que as montadoras terão de adquirir uma capacidade institucional muito maior para detectar sinais débeis em meio ao “ruído” dos dados da experiência do consumidor. À medida que aumenta a confiabilidade geral de veículos, será mais difícil prever falhas futuras e rastrear suas causas, já que o diagnóstico será feito com base em episódios raros.

 

Dada a grande variação na regulamentação do setor e em exigências do consumidor ao redor do mundo, montadoras que atuem em mercados avançados terão de tomar duas medidas básicas para sobreviver. Primeiro, terão de reduzir a complexidade. Como? Buscando a modularidade de toda forma (ainda que limitada) possível e reduzindo o número e variações de modelos e de opcionais. Segundo, terão de melhorar a gestão da complexidade remanescente.

 

 

Além disso, uma montadora global terá de criar projetos simples para mercados em desenvolvimento e complexos para o mundo desenvolvido. O segredo é evitar um projeto homogêneo — engenharia demais para o primeiro e engenharia de menos para o segundo. O consenso em torno de um novo conceito (por exemplo, veículos 100% elétricos) simplificaria a vida das montadoras, mas é um sonho distante, na melhor das hipóteses — que talvez nunca se concretize, já que o consumidor gosta de variedade. O mais provável é que as empresas tenham de seguir produzindo tanto produtos simples como complexos.

 

Muitos estrategistas acham que novas concorrentes estão prontas para reinventar o setor. A seu ver, as montadoras que dominaram o século 20 são dinossauros: grandes, lentas e ameaçadas de extinção. Mas esse é um setor no qual os dinossauros — pelo menos os que triunfarem na guerra contra a complexidade — têm tudo para superar novas adversárias, pelo menos pelas próximas décadas. Que bom que eu trabalho em um que fazem sucesso!

 

No próximo mês, vamos aprofundar nossa conversa sobre Recall.

 

Muito axé pra todo mundo,

 

Maria da Graça